O homem
caminhava pela rua com um chapéu, sobretudo bege, sapatos pretos, um guarda-chuva
no antebraço. No bolso na altura do peito, do sobretudo, uma caneta com câmera.
No bolso esquerdo estava uma câmera muito discreta, porém de uma qualidade
inquestionável, um bloco de papel anexado a uma caneta. No bolso direito tinha
um canivete e um smartphone muito sofisticado.
Uma criança
cutuca sua mãe e observa:
-
Olha mãe, um detetive!
-
Não fale besteiras, vamos logo. Apressou-se a mãe, olhando desatenta para o
homem.
Ele
era de fato um detetive e não se preocupava nem um pouco com seu estereótipo,
dizia que esse era seu melhor disfarce, ninguém iria desconfiar de alguém que
realmente parecia um detetive, ao menos que você fosse uma criança.
Mas
hoje ele não ia investigar nenhum caso, ele estava indo à casa de seu amado
para lhe deixar uma carta:
“Caro Gabriel.
Desde que você partiu meus dias tem sido a rotina.
Sinto falta de compartilhar os sonhos que tivemos durante a noite, de
seu bom humor pela manhã e como enchia essa casa de luz e alegria com sua
cantoria; enquanto eu, no meu mau humor típico tentava perder mais alguns
minutos na cama, ouvindo além da música, os barulhos das coisas de cozinha onde
preparava nosso café da manhã.
A tarde era sempre um misto de saudade e de vontade de te ver e de
noite sempre a incerteza dos meus horários por conta do trabalho.
Sinto saudade do sexo, tudo era sempre tão intenso e ao mesmo tempo
voraz, o incansável desejo de um pelo outro nos mostrava que para além do amor,
existia o que a minha profissão também me ensinou, que é o tão importante:
tesão.
Ser detetive sempre me fez refletir muito sobre o comportamento das
pessoas e ser muito atento e perceptivo. E não me perdôo ao pensar que não me
atentei a todos os sinais que me destes, de que nosso relacionamento estava em
crise. E agora eu sou só aquele homem ranzinza e sozinho que você conheceu na
cafeteria.
Espero que esteja bem.
Com amor, ...”
Colocou
por debaixo da porta e saiu sem rumo, andando sempre reto.
Hoje ele não
observava as pessoas e não se importava em ser observado. Hoje ele apenas
observava a si mesmo, e se dava cada vez mais conta, de que não se conhecia.
Desvendar fatos e o cotidiano das pessoas
tornara-se uma brincadeira de tão simples. Mas ele não sabia quem elas eram:
era só analisar as ações, cumprir seu trabalho e não pensar seus sentimentos,
suas razões, o que passava por suas cabeças.
E
se viu numa contradição tão grande!
Era tão
simples compreender o comportamento dos outros para enfim desvelar suas ações e
triunfar em seu trabalho. E seu “eu” era a si tão estranho, complexo e
imprevisível que suas ações só faziam sentido porque Gabriel tomou conta de
tudo; da casa; do seu dia a dia e agora que ele se foi, já não sabia se [re]construir.
Nesse dia o detetive andou, andou, andou... e
refletiu tanto e de suas incertezas, dúvidas e medos e se deu conta que há
muito tempo não sentia nem mesmo esses sentimentos.
E mesmo sem
saber de muitas coisas, ficou decidido que sofreria sem culpa e auto piedade. Sentiria
tudo que havia de sentir.
Porque sofrer
é buscar para além das ações e do que é previsível das pessoas, sofrer o levou
a um patamar elevado de sua relação consigo mesmo e estar sozinho não era
necessariamente ser ranzinza, estar sozinho poderia se transformar em desfrutar
de sua própria companhia.